É de fama e dinheiro que se trata a arte?
Luciano Trigo
Jornalista e editor de livros
Especial pra Folha de São Paulo - Ilustrada - 19 de novembro de 2007
O sucesso hoje não depende só do valor intrínseco de uma obra, mas sobretudo da capacidade do artista de se inserir nas regras do mercado.
Duas exposições recentes, uma no Rio e outra em São Paulo, sugerem interessantes questões sobre os rumos da arte contemporânea. Na instalação "Ainda Viva", a paulista Laura Vinci espalhou 7.000 maçãs sobre uma mesa de mármore branco e o chão de uma galeria; "Quebra-Molas", da carioca Débora Bolsoni, reproduziu um redutor de velocidade feito com uma tonelada de massa de paçoca de amendoim. As duas têm em comum a deliberada efemeridade e o recurso a comestíveis como matéria-prima.
Solicitado por uma revista a comentar as duas exposições, o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar afirmou: "Essa produção vai morrer aí. Trata-se da arte da boa idéia, da Caninha 51. [...] Não tem artesanato, não tem técnica, não tem linguagem. Já se usou de tudo: balde, bacia, ovo frito. É uma falta de imaginação, uma grande bobagem que não me interessa. [...] Uma mancha no chão, uma água escorrendo, tudo isso é expressão, mas não é arte". As artistas se justificam falando da transitoriedade das coisas vivas, de tentativas de simbolização etc.
Arte contemporânea é um tema em que é difícil tornar produtivo qualquer debate, pois sempre se cai num diálogo de surdos, num Fla-Flu, isto é, numa questão de adesão incondicional de torcedor, mais que de reflexão crítica. O que temos hoje são, de um lado, críticos, como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant'Anna, que contestam a legitimidade e o valor de instalações como as de Laura e Débora, e, de outro, artistas que rejeitam esse julgamento como reacionário.
Menos do que saber quem está com a razão, importa constatar que desse atrito não sai nenhum desdobramento interessante. Por quê? Algumas hipóteses: - Os artistas se tornaram auto-suficientes: ignoram solenemente qualquer crítica que os contesta.
- Os críticos perderam a importância que tinham no processo de legitimação da pro- dução artística. - Hoje, para um artista, importa muito mais se inserir numa rede de relações composta de curadores, marchands e galeristas do que obter reconhecimento crítico.
Valor da arte
A noção de valor em artes plásticas é altamente subjetiva.
Mas é também condicionada pelo contexto histórico-cultural e pelo modelo de relação entre economia e cultura que estiver prevalecendo.
O sucesso de um artista hoje não depende somente, nem mesmo principalmente, do valor intrínseco do que ele produz, dos méritos plásticos ou estéticos de sua obra, mas sobretudo de sua capacidade de inserção num "sistema" que funciona cada vez mais segundo as regras do mercado, do consumo e da moda -mesmo quando se veste o surrado disfarce da transgressão.
Pode-se simpatizar com as maçãs de Laura e o quebra-molas de Débora -embora não representem nada novo nem original. Mas é preocupante que esse tipo de produção -desligada da realidade, das questões contemporâneas, de compromissos, da História, do presente, em suma, da vida real- monopolize os espaços da arte hoje. É uma produção que pode até trazer fama, viagens e dinheiro a quem a faz, mas é disso que se trata?
As duas instalações pecam por serem obras inofensivas, fechadas em si mesmas, que não se articulam com nenhum processo exterior a elas próprias. Os artistas têm obrigação de vincular suas obras à realidade? Não. Mas, quando instalações desse tipo se tornam a tendência dominante da arte, fica a impressão de esgotamento e alienação.
Todos os movimentos de vanguarda do século 20 que resistiram à prova do tempo devem parte de seu êxito ao fato de terem mobilizado a sociedade, de estarem associados a transformações sociais, culturais e tecnológicas que tinham um impacto direto na vida das pessoas. Basta pensar na relação do futurismo com a guerra e com velocidade trazida pela máquina ao cotidiano para constatar que o novo não era uma manifestação espontânea e gratuita de gênios individuais.
Mesmo o surrealismo, com seu projeto de libertar a criação de qualquer controle racional, só foi possível num contexto de consolidação da idéia freudiana de inconsciente; mesmo assim, numa segunda etapa, foi associado por André Breton a um projeto político de esquerda -o que é uma contradição em termos, mas confirma o papel do contexto histórico na arte de cada época. Quando Marcel Duchamp expôs um urinol ou desenhou um bigode na Mona Lisa, fez um gesto revolucionário, que rompia com as convenções e abria possibilidades infinitas para a arte. Mas, como todos os gestos fundadores, é irrepetível, porque o contexto já passou: fazer um bigode na Mona Lisa hoje seria apenas ridículo.
Abolidos os cânones, qualquer adolescente é capaz de transgressões parecidas, e as fronteiras entre a criação artística e a empulhação pura e simples se tornam muito tênues. A falência da crítica como fator relevante agrava esse quadro, já que quem legitima o artista hoje é o sucesso em si: se faz sucesso, é bom. Nada mais capitalista. Mas talvez seja mesmo este o destino de todas as artes (a literatura, a música etc), isto é, enquadrar-se numa lógica de mercado ou morrer.
Projeção no mercado
Mais grave que a repetição anódina de fórmulas que fizeram sentido na primeira metade do século passado é o esforço, igualmente ultrapassado, de épater a qualquer custo. Como é cada vez mais difícil chocar as pessoas, alguns artistas caem no ridículo, numa tentativa desesperada de ganhar projeção num mercado (pois é) cada vez mais competitivo. Duas obras que nos últimos meses apareceram na mídia são bem representativas desse fenômeno:
1) Numa exposição em Manágua, em agosto passado, o artista plástico costa-riquenho Guillermo Vargas Habacuc amarrou um cachorro num canto da galeria e o deixou lá sem comida, até morrer de fome, diante dos olhos perplexos dos visitantes. Habacuc se justificou: "O importante para mim era constatar a hipocrisia alheia. Um animal torna-se foco de atenção quando o ponho em um local onde pessoas esperam ver arte, mas não quando está no meio da rua morto de fome".
2) Em outubro, o artista plástico cipriota Stelarc convocou a imprensa para mostrar sua obra mais recente: ele implantou uma orelha no próprio braço. Não satisfeito, ele anunciou que quer implantar um microfone próximo à orelha, para captar o que estiver sendo "escutado".
Será arte?